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Passei por muita coisa.

Sei que o mundo muda, o planeta muda. Mas costumava mudar devagarinho, nós íamos nos adaptando. Mas nessa velocidade dos últimos 100 anos vai ficar difícil para todo mundo. Já está ficando né. Tenho antigos moradores que nunca mais vi por aqui, como a arara-azul-pequena, a pararu-espelho, o tietê-de-coroa… esse pessoal que gostava das nuvens sumiu, dizem que estão extintos. Tem um pessoal que quase não vejo mais, como a onça pintada e a jaguatirica, sinto falta desses em especial pois adoro os felinos. Mas ainda tem uns tantos por aí, não está tudo perdido, ainda dá tempo de fazer alguma coisa. E é sobre o que dá para fazer que passo a te contar.

O muito pelo que passei sensibilizou alguns Sapiens, pouquíssimos é verdade, mais aquele pessoal técnico, biólogos principalmente. Esses não foram comovidos pelas minhas árvores, mas sim por alguns dos meus moradores mais “fofinhos”, como o Mico-Leão-Dourado. Mas essa é uma outra história, com um desfecho até agora muito feliz, pois que os Micos-Leões parecem ter escapado da extinção. Aqui na região de Silva Jardim o Mico-Leão é meu embaixador. Simpático, cativante e o Sapiens se identifica com ele. Sorte minha, pois ele chamou a atenção do Sapiens para protegerem algumas partes de mim, que chamam de Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio São João e a Reserva Biológica de Poço das Antas. Além disso vêm aumentando a quantidade de Sapiens, esses sim, fazendo jus à sua classificação como sábios, que recuperam partes de mim que eu acreditava já definitivamente perdidas. O Sítio Serra Queimada (o nome já conta metade da história) é uma dessas partes de mim.

 

 

Sítio Serra Queimada

O Sítio Serra Queimada, era uma daquelas partes de mim cobertas de feridas e cotocos. Quando você chegava aqui via no meio do terreno desolado uma jaqueira e um jambolão solitários, pequenos, que resistiam bravamente ao calor e lutavam para absorver os poucos nutrientes no meu solo empobrecido. A jaqueira e o jambolão não existiam originalmente na minha mata, foram trazidos para cá. Mas não me incomodava que fossem da Ásia, o que me incomodava é que estavam lutando para sobreviver, pois ali fazia um calor terrível, ainda mais para um Sapiens: calor e sem sombra. Quem chegava ali via, ao redor da jaqueira e do jambolão desesperados, o terreno coberto de capim, e onde não havia capim havia a terra nua, com aspecto arenoso, estéril.

Levantando o olhar daquela aridez, bem ao longe se via uma estrada de terra que serpenteava e seguia até desaparecer por entre pequenos morros carecas, mostrando minha terra exaurida exposta, tão diferente do que eu já fui.

Então em 1992, uns Sapiens chegaram ao Sítio Serra Queimada.  Começaram a plantar umas árvores aleatoriamente, povoaram com algumas galinhas, uns gatos e cachorros. Plantaram milho por um tempo e fizeram experiências com uma horta, que não vingou. Eram uns Sapiens que gostavam de estar ali e de estarem ocupados com a terra, mas eram gente da cidade. Plantaram umas laranjeiras, amoreiras, bananeiras. Outras coisas foram aparecendo por obra e graça dos meus outros moradores: morcegos, pássaros e abelhas, que fizeram o favor de espalhar sementes por aí. Esses Sapiens, apesar de atrapalhados e com pouco conhecimento sobre a terra, eu percebia que estavam movidos por uma saudade de mim, do que já fui.

O fato é que aos poucos pararam de criar galinhas, talvez por esses Sapiens não terem coragem de matar as galinhas depois de conviver com elas. Aos poucos a horta foi abandonada, acredito que por horta requerer atenção e cuidados e esses Sapiens da cidade não estarem sempre ali, nem terem a disciplina necessária.

Então um dia percebi que me plantaram um Pau-Brasil. Um Pau-Brasil! Nesse pedaço de mim eu não via Pau-Brasil desde lá pelos anos 1530. Foi uma emoção. Um reencontro comigo mesma. Começaram então a plantar Ipês, brancos, roxos e amarelos. Não demorou e me plantaram uns tantos Pau-Ferro. Esses Pau-Ferro ouvi comentarem que trouxeram as mudas lá de São Paulo, de uma vendedora de plantas na Av. Paulista.  Coisa mais esquisita, mas estava claro que esses Sapiens estavam agora tentando acertar. E à medida que árvores iam sendo plantadas, eu percebia que esses Sapiens respeitavam os outros moradores, sapos, lagartixas, tamanduás, formigas, abelhas, cobras, as pequenas cuícas, os morcegos. Quem aparecia por aqui não era molestado. Pelo contrário, pererecas desavisadas que caíam na piscina eram salvas para que não se afogassem, e lagartixas caçando mosquitos e pequenos insetos eram salvas dos gatos da casa.

Esses Sapiens sentiam saudades do que já fui. Seguiram plantando umas árvores aqui, outras ali, sem planejamento. Teve um Pau Brasil que ouvi dizerem que ganharam em uma feira de livros em Parati, um Ipê branco que ganharam de um amigo, um tal de Miel da Biovert.

 

Mas esse pessoal teve também momentos difíceis. Como quando foram derrubadas várias árvores que tinham plantado na entrada do sítio que dá acesso à BR 101. Um dia chegaram aqui e viram que a concessionária responsável pela obra de duplicação da pista tinha derrubado tudo e deixado a terra nua, uma grande ferida vermelha.  Os rostos tristes e desolados era o que eu vi naqueles dias. Fiquei desolada também. É tão difícil construir e tão fácil destruir. E essas pessoas estavam sinceramente tentando me reconstruir. Essa fase sombria durou um tempo até que finalmente passou e recomeçaram a plantar. Parece que aprenderam com a experiência ruim pois retomaram o plantio, mas plantando em locais onde as árvores não pudessem ser derrubadas. Notei também que foram conhecendo e aprendendo mais sobre as minhas árvores, as da Mata Atlântica, e passaram a plantar com mais critério e planejamento.  Desde então esse pedaço de mim tem mudado drasticamente. De paisagem triste, árida e coberta de capim, hoje estou tão verdejante que você consegue me ver do céu pelo Google Maps. Lá está este pedaço de mim, saudável e se adensando verde cada vez mais a cada ano.

Esperança

Fico feliz de ver o que estão conseguindo a partir da vontade de realizar e colocar a mão na massa. Vê-los me anima e enche de esperança de que conseguirei me conectar com outras partes de mim que estão hoje desconectadas. Eles chamam de corredores verdes. Eu chamo de corredores da vida, por onde poderão correr micos-leões, bugios, tamanduás, cuícas e todos os meus moradores que não estarão mais confinados em guetos minúsculos. Esses Sapiens me animaram, são uma lufada de esperança de que coisas boas estão por vir. Estou vendo que é possível.

Passei por muita coisa e não serei mais exatamente como eu era antes, mas o que importa é que eu SEREI. Minha extinção não é um destino inexorável. Estou animada. A jaqueira e o jambolão não estão mais sozinhos. Agora estão comigo. Estou de volta.

Nossos destinos estão entrelaçados: o seu com o meu. Vem comigo que eu te mostro o caminho.
Vamos? Agora.